16 de janeiro de 2009



O direito de se alfabetizar na escola


Um pouco de história


O modelo escolar de alfabetização1 nasceu há pouco mais de dois séculos, precisamente em 1789, na França, após a Revolução Francesa. A partir de então, "crianças são transformadas em alunos, aprender a escrever se sobrepõe a aprender a ler, ler agora se aprende escrevendo – até esse período, ler era uma aprendizagem distinta e anterior a escrever, compreendendo alguns anos de instrução através do ensino individualizado. É, então, no jogo estabelecido pela Revolução entre a continuidade e a descontinuidade do tempo, onde a ruptura vai sendo atropelada pela tradição, que a alfabetização se torna o fundamento da escola básica e a leitura/escrita, aprendizagem escolar".2


Analisando a evolução da investigação e do debate em relação à alfabetização escolar no século XX,3 é possível definir, em linhas gerais, três períodos.


O primeiro período corresponde, aproximadamente, à primeira metade do século, quando a discussão se dava estritamente no terreno do ensino. Buscava-se o melhor método para ensinar a ler, com base na suposição de que a ocorrência de fracasso se relacionava com o uso de métodos inadequados. A discussão mais candente travou-se entre os defensores do Método Global e os do Método Fonético.4 No Brasil, essa discussão caiu em desuso a partir da difusão do método que, na época, foi identificado como "misto" – nada mais que nossa conhecida cartilha, baseada em análise e síntese e estruturada a partir de um silabário.
O segundo momento, cujo pico foi nos anos 60, teve por centro geográfico os Estados Unidos. A
discussão das idéias sobre alfabetização foi levada para dentro de um debate mais amplo, em torno da questão do fracasso escolar. A luta contra a segregação dos negros, com a conseqüente batalha pela integração nas escolas americanas, contribuiu para que se tornassem mais explícitas as dificuldades escolares dessas minorias. Muito dinheiro foi investido em pesquisas, para tentar compreender o que havia de errado com as crianças que não aprendiam. Buscava-se no aluno a razão de seu próprio fracasso.


São desse período as teorias que hoje chamamos "teorias do déficit". Supunha-se que a aprendizagem dependia de pré-requisitos (cognitivos, psicológicos, perceptivo-motores, lingüísticos…) e que certas crianças fracassavam por não dispor dessas habilidades prévias.O fato de o fracasso concentrar-se nas crianças das famílias mais pobres era explicado por uma suposta incapacidade das próprias famílias proporcionarem estímulos adequados.


Baterias de exercícios de estimulação foram criadas, como "remédio" para o fracasso, como se ele fosse uma doença. Essa abordagem, que já se anunciava no teste ABC, de Lourenço Filho – um conjunto de atividades para verificar e, principalmente, medir a "maturidade" que a ciência de então supunha necessária à alfabetização bem-sucedida – teve muita influência no Brasil. Nos anos 70, foi largamente difundida a idéia de que, no início da escolaridade, toda criança deveria passar pelos exercícios conhecidos como de "prontidão" (do inglês, readiness) para a alfabetização. Seria uma espécie de vacinação em massa. Mas a vacina, infelizmente, era inócua.


O terceiro período começa em meados dos anos 70, marcado por uma mudança de paradigma. O
desenvolvimento da investigação nessa área mudou radicalmente seu enfoque, suas perguntas. Em lugar de procurar correlações que explicassem o déficit dos que não conseguiam aprender, começou-se a tentar compreender como aprendem os que conseguem aprender a ler e escrever sem dificuldade e, principalmente, o que pensam a respeito da escrita os que ainda não se alfabetizaram.


Um trabalho de investigação que desencadeou intensas mudanças na maneira de os educadores
brasileiros compreenderem a alfabetização foi o coordenado por Emília Ferreiro e Ana Teberosky, publicado no Brasil com o título Psicogênese da língua escrita, em 1985.5 A partir dessa investigação, foi necessário rever as concepções nas quais se apoiava a alfabetização. E isso tem demandado uma transformação radical nas práticas de ensino da leitura e da escrita no início da escolarização, ou seja, na didática da alfabetização. Já não é mais possível conceber a escrita exclusivamente como um código de transcrição gráfica de sons, já não é mais possível desconsiderar os saberes que as crianças constroem antes de aprender formalmente a ler, já não é mais possível fechar os olhos para as conseqüências provocadas pela diferença de oportunidades que marca as crianças de diferentes classes sociais. Portanto, já não se pode mais ensinar como antes...


"[…] as mudanças necessárias para enfrentar sobre bases novas a alfabetização inicial não se resolvem com um novo método de ensino, nem com novos testes de prontidão nem com novos materiais didáticos.
É preciso mudar os pontos por onde nós fazemos passar o eixo central das nossas discussões.
Temos uma imagem empobrecida da língua escrita: é preciso reintroduzir, quando consideramos a alfabetização, a escrita como sistema de representação da linguagem.
Temos uma imagem empobrecida da criança que aprende: a reduzimos a um par de olhos, um par de ouvidos, uma mão que pega um instrumento para marcar e um aparelho fonador que emite sons. Atrás disso há um sujeito cognoscente, alguém que pensa, que constrói interpretações, que age sobre o real para fazê-lo seu." Emília Ferreiro


1 Embora o termo "alfabetização" tenha diferentes sentidos, neste documento ele está usado com o significado de "processo de ensino e aprendizagem do sistema alfabético de escrita", ou seja, o processo de ensino e aprendizagem inicial de leitura e escrita.2 BARBOSA, José Juvêncio. "A herança de um saber: a alfabetização", in: Alfabetização – Catálogo da base de dados.Vol. 1, São Paulo, FDE.3 A referência aqui é apenas ao Ocidente – especialmente Europa e América do Norte e do Sul.4 O Método Global ou Analítico defendia que o melhor era oferecer ao aluno a totalidade, ou seja, palavras, frases ou pequenos textos, para que ele fizesse uma análise e chegasse às partes, que são as sílabas e letras. O Método Fonético ou Sintético, ao contrário, propunha que o aluno tinha de aprender primeiro as letras ou sílabas, e o som das mesmas, para depois chegar a palavras ou frase.
5 A doutora Emília Ferreiro foi orientanda e colaboradora de Jean Piaget. Suas pesquisas em alfabetização demonstram o grande valor heurístico do construtivismo interacionista piagetiano para a compreensão dos processos de aquisição da leitura e da escrita e de outros conteúdos que se imaginavam, até então, estritamente escolares.



A alfabetização e o fracasso escolar



Infelizmente, não é injusto afirmar que, ao longo da história, a escola brasileira tem fracassado em sua tarefa de garantir o direito de todos os alunos à alfabetização. Em um primeiro momento, porque o acesso à escola não estava assegurado a todos; depois, porque, mesmo com a democratização do acesso, a escola não conseguiu – e ainda não consegue – ensinar efetivamente todos os alunos a ler e escrever, especialmente quando provêm de grupos sociais não-letrados.
A partir da época em que as estatísticas estão disponíveis, é possível constatar que muitas das crianças que entram na 1ª- série do Ensino Fundamental são reprovadas no final do ano, como indica a tabela abaixo.




Taxa de aprovação ao final da 1ª- série do Ensino Fundamental (IBGE/INEP)


1956 41,8% 1987 47% 1988 46% 1989 49% 1990 51% 1991 51% 1992 51% 1993 50%


1994 53% 1995 53% 1996 58% 1997 65% 1998 68,7%


*Nos anos de 1997 e 1998, algumas secretarias de educação passaram a adotar o sistema de ciclos, previsto na LDBEN



O fato é que há muito tempo os índices de fracasso escolar na alfabetização são inaceitáveis e as medidas tomadas no âmbito dos sistemas públicos pouco têm contribuído para transformar esse quadro de forma significativa.A tabela acima parece indicar que é completamente falsa a crença de que "antigamente todos aprendiam na escola". Desde 1956, com estatísticas mais precisas a respeito dos índices de promoção e retenção na escola pública brasileira, constata-se que os alunos reprovados (ou "retidos", como se preferiu chamar anos depois) já representavam parcela significativa – e isso sem contar o grande número de crianças brasileiras que nem freqüentava a escola.


A falta de explicações para as causas do fracasso da escola em alfabetizar todos os alunos fez com que essa responsabilidade, direta ou indiretamente, fosse a eles atribuída – à sua suposta incapacidade de aprender e/ou às suas perversas condições de vida. Apesar de todas as razões sociais e políticas para não depositar a responsabilidade pelo fracasso no aluno, as teorias do déficit cognitivo e/ou da "carência cultural" acabaram por consolidar a crença de que a possibilidade de indivíduos aprenderem teria direta relação com a sua condição econômica, social e cultural. Deriva dessa crença o surgimento de programas compensatórios, dos quais um dos exemplos emblemáticos é o da merenda escolar.


Em oposição a uma concepção de escola "conteudista", ou seja, preocupada acima de tudo com a
transmissão de conteúdos escolares, foi se configurando uma concepção – e várias experiências – de uma escola transformadora, progressista. Mas, infelizmente, nem assim se conseguiu garantir a todos os alunos o direito de desenvolver diferentes capacidades na escola, o que, evidentemente, pressupõe aprender a ler e escrever.


Com isso, consolidou-se progressivamente uma cultura escolar da repetência, da reprovação, que
acabou por ser aceita como um fenômeno natural. O país foi se acostumando com o fato de cerca de metade de suas crianças não se alfabetizar ao término do primeiro ano de escolaridade no Ensino Fundamental.


Essa cultura teve uma enorme influência no universo de representações que os educadores foram construindo sobre o fracasso escolar e sobre os alunos que fracassam, bem como na sua relação com eles: freqüentemente, essas representações expressam-se em falta de confiança nas reais potencialidades que eles têm para as aprendizagens de modo geral. Se é verdade que esses alunos chegam à escola sem muita intimidade com os usos sociais da escrita e com os textos escritos, também é verdade que eles trazem um repertório de saberes que as crianças e jovens de classe média e alta não possuem, saberes que não são valorizados e nem validados do ponto de vista pedagógico.Todo aluno tem direito a uma educação escolar que, pautada no princípio da eqüidade, garanta o conhecimento necessário para que desenvolva suas diferentes capacidades – uma educação que não acentue as diferenças provocadas pela desigualdade de oportunidades sociais e culturais, que não as tome, sob nenhum pretexto, como diferenças relacionadas às suas possibilidades de aprendizagem. Não se pode esperar que os alunos iniciem a escolaridade sabendo coisas que nunca tiveram a chance de aprender: quando eles não sabem o que se espera, é preciso ensiná-los.



Os ciclos e a progressão continuada


A partir dos anos 80, começou a haver uma maior conscientização sobre essas questões, especialmente sobre o fato de que as oportunidades de participação em práticas sociais de leitura e escrita contribuem decisivamente para o repertório de conhecimentos lingüísticos das crianças, o que, de forma indireta, determina o tempo necessário à alfabetização. Isso acabou por sugerir a defesa de um tempo de aprendizagem escolar adequado às reais condições das crianças e por legitimar uma tendência colocada em vários países: a organização da escolaridade em ciclos.


Desde então, vários sistemas de ensino passaram a se organizar em ciclos, especialmente nas séries iniciais (antigas primeira e segunda séries): as séries não eram mais separadas por uma avaliação de final de ano, destinada a promover ou reter os alunos. Em alguns sistemas de ensino, a organização da escolaridade em ciclos não se restringiu às séries iniciais, tendo progressivamente se estendido a todo o Ensino Fundamental.


Do ponto de vista político-pedagógico, defender a organização da escolaridade em ciclos, segundo a concepção de progressão continuada, é defender também o direito do aluno a condições institucionais que contribuam para seu processo de aprendizagem, o que não ocorre num sistema seriado e caracterizado pela cultura da reprovação. A defesa desse direito é hoje um consenso na comunidade educacional e uma prescrição legal: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional oferece uma série de aberturas para que os sistemas de ensino adotem as medidas que considerem mais adequadas para assegurá-lo:


Art.32. O Ensino Fundamental, com duração mínima de oito anos, obrigatório e gratuito na escola pública, terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante:
I. o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo;
II. a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade;
III. o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores.
[…]
Parágrafo 1º. É facultado aos sistemas de ensino desdobrar o Ensino Fundamental em ciclos.
Parágrafo 2º. Os estabelecimentos que utilizam progressão regular por série podem adotar no Ensino Fundamental o regime de progressão continuada, sem prejuízo da avaliação do processo de ensino-aprendizagem, observadas as normas do respectivo sistema de ensino. (LDBEN)



A iniciativa de flexibilizar o tempo escolar considerando o necessário tempo de aprendizagem de
alunos com diferentes níveis de conhecimento poderia garantir, no início da escolaridade, que a escola funcionasse como um ambiente alfabetizador de fato, permitindo o contato freqüente e significativo com situações de leitura e escrita destinadas tanto à aprendizagem do código alfabético como dos usos da língua portuguesa. Nesse contexto, os alunos teriam a chance de um percurso de aprendizagem contínuo ao longo de um ciclo básico (geralmente com duração de dois anos), sem o prejuízo de uma eventual retenção ao final da 1ª- série sempre que ainda não estivessem completamente alfabetizados – o que até então obrigava os retidos a recomeçarem tudo de novo no ano seguinte, como se o fato de terem sido retidos significasse que nada de importante haviam aprendido.


A proposta de ciclo representava (e continua representando) uma possibilidade concreta de superar a injustiça do "tudo ou nada" encarnada no sistema seriado em que o que conta no final do ano letivo, no momento da promoção/retenção, não é o quanto o aluno aprendeu considerando ao mesmo tempo o que sabia de início e os objetivos de aprendizagem colocados para a série, mas apenas o quanto ele aprendeu, ou não, considerando exclusivamente os objetivos propostos. E, de certa forma, a organização da escolaridade em ciclos é também uma forma indireta de combater a evasão: como sabemos, a retenção é a grande vilã da evasão escolar, porque atesta institucionalmente um fracasso que seria do aluno.


Entretanto quando se adotou a organização da escolaridade em ciclos, nem sempre se alcançaram os resultados esperados por duas razões principais.


A primeira razão é que a concepção de ciclos e de progressão continuada se choca com uma cultura escolar cristalizada há muito tempo – a da seriação e da conseqüente reprovação dos alunos com desempenho escolar considerado insatisfatório –, tornando difícil a sua apropriação.


A outra razão, mais importante, é que nem sempre foram asseguradas as condições básicas para que uma proposta de organização da escolaridade em ciclos se impusesse como válida e necessária. As principais, dentre essas condições:



• definição de objetivos de aprendizagem claros e coerentes com as possibilidades reais dos alunos;
• organização de grupos paralelos de apoio pedagógico para aqueles com aprendizagens insuficientes;
• trabalho coletivo dos professores na escola, articulado em torno de um projeto educativo comum;
• e, especialmente, adequada formação dos professores para ensinar mais e melhor aos alunos.



Como essas condições em muitos casos não foram garantidas de forma simultânea, constituindo-se numa política em favor do sucesso escolar, as propostas de ciclo acabaram ficando muito identificadas com a idéia de promoção automática, que freqüentemente não goza da simpatia da opinião pública de um modo geral.


Uma rápida análise da situação de fato



O critério de reprovação ou aprovação se estabeleceu como indicador de competência dos alunos no imaginário de educadores e pais de alunos: aos que aprenderam os conteúdos necessários, a merecida aprovação; aos que não aprenderam, a reprovação. Por mais perverso que possa parecer, o fenômeno da reprovação colocava, por assim dizer, "as coisas nos devidos lugares" em relação ao conhecimento a ser adquirido na escola e, enganosamente, revestia de qualidade um ensino muito pouco eficaz – a ponto de se considerar como "fortes", com ensino de alto nível, as escolas que apresentavam os mais elevados índices de reprovação.


Como se chegou a esse ponto, de julgar "de qualidade" as escolas que ensinam poucos alunos e
reprovam os demais, era de se esperar que uma proposta destinada a romper com o fenômeno da reprovação provocasse o temor ao rebaixamento do ensino. E foi o que aconteceu, na maior parte dos casos.


Pois bem, para superar essa lógica perversa de que reprovação e qualidade de ensino andam juntas, a proposta de organização da escolaridade em ciclos, com progressão continuada, deveria provar sua intenção de elevar a qualidade do ensino para todos os alunos. De que forma? Seria preciso, por exemplo: manter a alfabetização como objetivo do primeiro ano do ciclo básico; assegurar propostas eficazes de apoio pedagógico para os alunos com aprendizagens insuficientes; favorecer o trabalho coletivo na escola; e oferecer adequada formação aos professores.


Essas iniciativas garantiriam melhores índices de sucesso escolar dos alunos na alfabetização?
Possivelmente, desde que as ações fossem efetivas e simultâneas.


Manter a alfabetização como objetivo do primeiro ano do ciclo básico não implicaria punir os alunos que porventura não aprendessem a ler e escrever nesse período, mas, ao contrário, implicaria pautar a proposta didática na expectativa de que é possível ensinar a todos – embora saibamos que nem todos se alfabetizam completamente ao cabo de um ano letivo.Teríamos professores procurando ensinar a todos, e não professores que passaram a acreditar que as crianças da escola pública "precisam" de mais de um ano para aprender a ler e escrever (e foi isso o que geralmente aconteceu nos sistemas de ensino que implantaram o ciclo básico).


Teríamos professores respaldados por encaminhamentos decorrentes de um projeto educativo
compartilhado na escola e por um sistema de apoio pedagógico que impediria o acúmulo de defasagens que se somam, série após série, ao longo do Ensino Fundamental.


Teríamos professores em condições de ensinar a todos os alunos, porque estariam sendo preparados continuamente para essa difícil tarefa.


Teríamos conseguido instaurar uma cultura escolar centrada no direito de aprender: no direito do aluno a aprender e no direito do professor a aprender a ensinar.


Mas o fato é que a história da educação não se faz exclusivamente com boas intenções pedagógicas. Faz-se, como se fazem todas as histórias, a partir de ações orientadas por concepções e interesses dificilmente convergentes. O fato é que nem sempre o processo de implantação do sistema de ciclos ocorreu como hoje achamos que deveria ter ocorrido e, agora, temos outros problemas para solucionar.


Evidentemente, é presumível que uma medida institucional que busque romper com uma cultura consolidada tenha impacto, tenha conseqüências positivas e negativas. Entretanto, no caso específico da organização da escolaridade em ciclos, há uma conseqüência que é preciso analisar cuidadosamente: a proposta de progressão continuada, quando não consegue garantir a sua principal finalidade pedagógica (maiores índices de aprendizagem), inevitavelmente desvela o problema da não-aprendizagem dos alunos na escola, antes legitimada pela cultura da reprovação.


Quando se analisa a questão do ponto de vista do aluno cuja alfabetização não está sendo garantida se verifica que, na essência, praticamente nada mudou: se antes ele ficava reprovado infinitas vezes por não ter se alfabetizado, chegando em muitos casos a desistir da escola por essa razão, agora ele avança na escolaridade em idêntica condição – sem aprender a ler e escrever. Isso significa que o problema não é a progressão continuada; o problema é que, seja num sistema seriado ou organizado em ciclos, a escola continua não conseguindo cumprir sua tarefa de alfabetizar a todos. Significa que a proposta de progressão continuada não teve o poder de, por si só, melhorar a aprendizagem dos alunos. E nem poderia.



A correção de fluxo e os projetos de aceleração da aprendizagem


A cultura da reprovação teve como conseqüência, evidentemente, a evasão escolar e a defasagem idade-série dos que permaneceram estudando – uma questão que hoje incomoda imensamente os sistemas de ensino, por razões tanto econômicas quanto político-pedagógicas.
Na história das iniciativas pensadas como solução para esse problema, os anos 90 foram marcados pelas propostas de correção do fluxo escolar. Assim como a implantação do sistema de ciclos, a correção de fluxo também é uma proposta importante, válida e interessante. Entretanto, para obter os resultados que a realidade exige, deverá ser acompanhada por um sólido processo de formação permanente dos professores, especialmente na área de Língua Portuguesa, prioritariamente em alfabetização.


Todos sabemos que o fracasso do ensino está fortemente assentado na incapacidade da escola tanto de alfabetizar todos os alunos quanto de transformar os que consegue alfabetizar em verdadeiros usuários da escrita. Quando foca a alfabetização apenas no ensino do que as letras representam e desconsidera os usos e formas da língua escrita, a escola fabrica o que se convencionou chamar de "analfabetos funcionais": indivíduos que compreenderam o funcionamento do sistema de escrita, mas não sabem pôr em uso esse conhecimento, não sabem ler e escrever de fato.


Assim que deixou de existir o exame de admissão e passou a bastar a aprovação no final da 4ª- série para dar acesso ao antigo ginásio, constituiu-se um novo gargalo de reprovação – agora, na passagem da 5ª- para a 6ª- série. Quando se observa o fenômeno de perto, a olho nu, uma hipótese se impõe inevitavelmente: os alunos parecem ter enorme dificuldade para continuar estudando, ao que tudo indica, porque não são leitores suficientemente competentes para aprender por meio da leitura.A aprendizagem de praticamente todos os conteúdos curriculares de 5ª- a 8ª- séries depende fortemente da capacidade de aprender a partir dos textos. Aparentemente, os professores de 1ª- a 4ª- séries não têm claro que o desenvolvimento desse grau de competência leitora é algo que cabe a eles garantir; e tampouco os professores de 5ª- a 8ª- séries supõem que essa seja uma tarefa sua.


São esses os destinatários dos projetos de correção de fluxo: os analfabetos do início da escolaridade e os analfabetos funcionais que estão em todas as séries do Ensino Fundamental. Portanto, nenhum projeto desse tipo conquistará os resultados esperados, do ponto de vista pedagógico, se os professores não forem preparados para saldar a dívida que a escola tem com essas crianças e esses jovens – para que eles não se convertam nos adultos que retornam tempos depois para uma nova tentativa.



Por que é tão difícil alfabetizar todos os alunos?


A análise de quem são os alunos que a escola não tem conseguido alfabetizar ao longo dos anos indica que não se trata de uma metade qualquer, aritmeticamente neutra: essa metade é formada, majoritariamente, pelos alunos das camadas populares. E por que seria mais difícil alfabetizar esses alunos?


Como se sabe, até vinte anos atrás, professores, especialistas e pesquisadores se empenhavam em tentar compreender o que havia de errado com esses alunos. Em descobrir por que eles não aprendiam. A compreensão dos processos pelos quais se aprende a ler e escrever só foi possível a partir das últimas duas décadas.Até então um dos raros consensos entre os estudiosos brasileiros acerca dessa questão era: o que servia para ensinar as crianças de classe média e alta não servia para as crianças das camadas populares. Acreditava-se que os processos de aprendizagem das diferentes classes sociais seriam decididamente diferentes, e isso explicaria desempenhos muito díspares.


No entanto, a descrição psicogenética do processo de alfabetização mostrou que o processo pelo qual se aprende a ler e escrever é o mesmo, em linhas gerais, para indivíduos de diferentes classes sociais – inclusive, tanto para crianças como para adultos. A diferença reside nas experiências prévias destes alunos com práticas sociais de leitura e escrita.


Se antes se acreditava que o fundamental para alfabetizar os alunos era o treino de determinadas habilidades – memória, coordenação motora, discriminação visual e auditiva, noção de lateralidade – a recente pesquisa sobre a aprendizagem da leitura e da escrita mostrou que a alfabetização (como tantas outras aprendizagens) é fruto de um processo de construção de hipóteses; não é decorrência direta destas habilidades mas sim de procedimentos de análise da língua escrita por parte de quem aprende: por trás da mão que escreve e do olho que vê, existe um ser humano que pensa e, por isso, se alfabetiza.


Hoje sabemos que, no processo de alfabetização, as crianças e os adultos – independente de sua origem social e da proposta de ensino do professor – formulam hipóteses muito curiosas, mas também muito lógicas. Progridem de idéias bastante primitivas pautadas no desconhecimento da relação entre fala e escrita para idéias surpreendentes sobre como seria essa relação.6 Depois de uma longa trajetória de reflexão, finalmente é possível compreender a natureza da relação entre fala e escrita, desvendando o mistério que o funcionamento da escrita representa para todos os analfabetos. É quando se alfabetizam, no sentido estrito da palavra.


São as situações de uso da leitura e da escrita e o valor que se dá a essas práticas sociais que configuram um ambiente alfabetizador – um contexto de letramento – e um espaço de reflexão sobre como funcionam as coisas no mundo da escrita: os materiais em que se lê, as situações em que se escreve e se lê, a forma como os adultos lêem e escrevem, como se escrevem os nomes das pessoas queridas e o próprio nome, o que dizem as embalagens que circulam em casa, a direção da escrita e da leitura em nossa língua (da esquerda para a direita), quantas e quais letras se colocam para escrever, por que há mais letras do que parece necessário nos textos escritos, o que está escrito aqui e ali, que letra é essa, como se lê essa escrita… e assim por diante.


Enquanto as crianças oriundas de famílias que fazem uso sistemático da escrita e da leitura passam a primeira infância aprendendo coisas desse tipo, em suas casas, com seus pais, tios e avós, as crianças privadas destas experiências estão aprendendo o que seria impensável a uma criança pequena de classe média e alta: cozinhar para os irmãos menores, dar banho sem derrubá-los, acordar de madrugada para ir trabalhar na roça, ou na rua, vendendo objetos nos sinais de trânsito… As primeiras ocupam seu tempo desenvolvendo procedimentos que as farão se alfabetizar muito cedo; as últimas, por sua vez, estão desenvolvendo outros procedimentos relativos a suas experiências cotidianas: portanto o repertório de saberes é outro, é outra a bagagem de vida, como se dizia há algum tempo.


Em outras palavras, algumas crianças não aprendem a ler e escrever aos seis ou sete anos pela mesma razão que as outras não aprendem a cozinhar, lavar, passar, cuidar da casa, carpir o roçado e desviar-se dos carros na rua.


Quando a escola não valoriza esta diversidade de saberes, fruto das experiências anteriores, faz com que estas crianças se sintam entrando em um novo mundo, estranho e hostil. Nessas condições, é de se esperar que elas percebam que não podem corresponder ao que os professores esperam delas e acabam desenvolvendo a crença de que são incapazes. Reconhecer as diferenças de repertório sobre a escrita implica um comprometimento efetivo com a aprendizagem dos alunos que não têm quase nenhum contato com textos e seus usos, pois são exatamente estes que mais dependem da escola para ter acesso ao conhecimento letrado.


Respeitar e, de fato, considerar as diferenças, valorizar os saberes que os alunos possuem e criar um contexto escolar favorável à aprendizagem não são apenas valores de natureza ética: são a base de um trabalho pedagógico comprometido com o sucesso das aprendizagens de todos.


6 Quando ainda não tinha sido possível conhecer as razões de os alunos terem essas idéias e escritas estranhas, dizia-se que eles eram portadores de "dificuldade de aprendizagem". Os índices desses "distúrbios" chegavam a 30%, segundo os especialistas. Depois que se pôde compreender o que acontecia com os alunos ainda não alfabetizados e que revelavam as suas hipóteses, esses percentuais caíram muitíssimo, oscilando de 1 a 3%, segundo os mesmos especialistas (Caderno Idéias nº- 2 e nº- 19, FDE-SEE/SP, 1989 e 1993 respectivamente).



Uma cultura escolar centrada no direito de aprender


Nas duas últimas décadas, a pesquisa a respeito dos processos de aprendizagem da leitura e da escrita vem comprovando que a estratégia necessária para um indivíduo se alfabetizar não é a memorização, mas a reflexão sobre a escrita. Essa constatação pôs em xeque uma antiga crença, na qual a escola apoiava suas práticas de ensino, e desencadeou uma revolução conceitual, uma mudança de paradigma. Estamos agora passando por esse momento, com as vantagens e os prejuízos que caracterizam um período de transição, de transformação de idéias e práticas cristalizadas ao longo de muitos anos.


Mas, se não é por um processo de memorização, como funciona o aprendizado da leitura e da escrita por meio da reflexão sobre a escrita?


Em primeiro lugar, é preciso considerar que alguns conteúdos escolares são, de fato, aprendidos por memorização.Tudo que não requer construção conceitual, por ser de simples assimilação, depende da memorização das informações: nomes em geral (das letras, por exemplo), informações e instruções simples (como "em português, escrevemos da esquerda para a direita"), respostas a adivinhações,números de telefone, endereços, etc.


O grande equívoco, no qual a concepção tradicional de ensino e aprendizagem se apoiou nas últimas décadas, consiste em acreditar que os conteúdos escolares de modo geral são aprendidos por memorização. Não são, hoje sabemos.


Para aprender a ser solidário, a trabalhar em grupo, a respeitar o outro, a preservar o meio ambiente, é preciso vivenciar situações em que esses conteúdos representam valores. Não adianta memorizar informações, como a de que é preciso ser solidário, respeitar os outros ou cuidar da natureza. Isso não basta para saber o valor e a necessidade dessas atitudes.


Para aprender a interpretar textos, redigir textos e refletir sobre eles e sobre a escrita convencional, não basta memorizar definições e seqüências de passos a serem desenvolvidos. É preciso exercitar essas atividades com freqüência, para chegar a realizá-las com habilidade e desenvoltura. Procedimentos– quaisquer procedimentos – são aprendidos com o uso.


Para aprender conceitos e princípios complexos – como é o caso do sistema alfabético de escrita –, ou seja, para se alfabetizar, não basta memorizar infinitas famílias silábicas. Uma conduta dessas corresponde a tratar um conteúdo de alto nível de complexidade como se fosse uma informação simples, que pode ser assimilada com facilidade apenas pela memorização.


A compreensão das regras de geração do sistema de escrita em português depende de um processo sistemático de reflexão a respeito de suas características e de seu funcionamento. Quer dizer: para se alfabetizar, o indivíduo precisa aprender a refletir sobre a escrita (um procedimento complexo, que requer exercitação freqüente), além de compreender o funcionamento do sistema alfabético de escrita (um conteúdo também complexo, cujo aprendizado requer a construção de interpretações sucessivas, que se superam umas às outras).


Portanto, quando se fala que hoje sabemos que se aprende a ler e escrever lendo e escrevendo textos, não se está falando de algo simples, como o enunciado pode enganosamente sugerir.Aprender a ler e escrever lendo e escrevendo requer um conjunto de procedimentos de análise e de reflexão sobre a escrita – um objeto de conhecimento que, por suas características e seu funcionamento, exige um alto nível de elaboração intelectual por parte do aprendiz, seja ele criança ou adulto.


Para poder ler textos quando ainda não se sabe ler convencionalmente, é preciso utilizar o conhecimento de que se dispõe sobre o valor sonoro convencional das letras e ter informações parciais acerca do conteúdo do texto, podendo assim fazer suposições a respeito do que pode estar escrito. Em outras palavras, é preciso utilizar simultaneamente estratégias de leitura que implicam decodificação, seleção, antecipação, inferência e verificação. E, em alguns casos, ajustar o conteúdo que se sabe de cor ao que está escrito.


Para poder escrever textos quando ainda não se sabe escrever, é preciso escolher quantas e quais letras utilizar – e, se a proposta for escrever junto com um colega que faz outras opções de uso das letras, refletir a respeito de escolhas diferentes para as mesmas necessidades.


Para poder interpretar a própria escrita (ler o que escreveu) quando ainda não se sabe ler e escrever, é preciso justificar as escolhas feitas, para si mesmo e para os outros, com todas as explicações que isso demanda: por que sobram letras, ou por que elas parecem estar fora de ordem, por que parece estar escrito errado conforme seu próprio critério, etc.


Como se pode ver, nada há de fácil no processo de alfabetização. O desafio, nesse caso, consiste em organizar as propostas didáticas a partir do que hoje se sabe a respeito de como se aprende. É a resposta a esse desafio que pode conferir eficácia ao ensino, instaurando uma cultura escolar centrada no direito à aprendizagem.



Um modelo de formação centrado no direito de aprender a ensinar


Para assegurar aos alunos seu direito de aprender a ler e escrever, é indispensável que os professores tenham assegurado seu d ireito de aprender a ensiná-los. Cabe às instituições formadoras a responsabilidade de preparar todo professor que alfabetiza crianças, jovens e adultos para:


• encarar os alunos como pessoas que precisam ter sucesso em suas aprendizagens para se desenvolverem pessoalmente e para terem uma imagem positiva de si mesmos, orientando-se por esse pressuposto;
• desenvolver um trabalho de alfabetização adequado às necessidades de aprendizagem dos alunos, acreditando que todos são capazes de aprender;
• reconhecer-se como modelo de referência para os alunos: como leitor, como usuário da escrita e
como parceiro durante as atividades;
• utilizar o conhecimento disponível sobre os processos de aprendizagem dos quais depende a
alfabetização, para planejar as atividades de leitura e escrita;
• observar o desempenho dos alunos durante as atividades, bem como as suas interações nas situações de parceria, para fazer intervenções pedagógicas adequadas;
• planejar atividades de alfabetização desafiadoras, considerando o nível de conhecimento real dos alunos;
• formar agrupamentos produtivos de alunos, considerando seus conhecimentos e suas características pessoais;
• selecionar diferentes tipos de texto, que sejam apropriados para o trabalho;
• utilizar instrumentos funcionais de registro do desempenho e da evolução dos alunos, de planejamento e de documentação do trabalho pedagógico;
• responsabilizar-se pelos resultados obtidos em relação às aprendizagens dos alunos.


O desenvolvimento dessas competências profissionais é condição para que os professores alfabetizadores ensinem todos os seus alunos a ler e escrever. Não é possível ensinar a todos quando se sabe ensinar apenas àqueles que iriam aprender de qualquer forma, por viverem em um contexto que provê condições e favorece suas aprendizagens.


Nenhum professor se torna competente profissionalmente apenas estudando. Competência
profissional (Perrenoud, 1999) significa a capacidade de mobilizar múltiplos recursos – entre os quais os conhecimentos teóricos e práticos da vida profissional e pessoal –, para responder às diferentes demandas colocadas pelo exercício da profissão. Ou seja, significa a capacidade de responder aos desafios inerentes à prática, de identificar e resolver problemas, de pôr em uso o conhecimento e os recursos disponíveis.


As práticas de formação inicial e continuada de professores, de modo geral, não se orientam por objetivos desse tipo.O modelo de formação profissional que foi se tornando convencional é basicamente teórico, tem como foco exclusivo a docência, desconsidera os "pontos de partida" dos professores, privilegia o texto escrito como meio de acesso à informação, não valoriza a prática como importante fonte de conteúdos da formação, prioriza modalidades convencionais de comunicação (como aula, seminário, palestra e curso), não se organiza a partir de uma avaliação diagnóstica e não dispõe de instrumentos eficazes de avaliação das competências profissionais. Portanto, não favorecem o desenvolvimento de competências profissionais, tal como definidas neste documento.


Em qualquer campo de atuação, o conhecimento profissional representa o conjunto de saberes que habilita o indivíduo para o exercício de sua profissão – no caso do professor, é o conjunto de saberes que o habilita para o exercício do magistério, que o torna capaz de desempenhar todas suas funções profissionais.


O conhecimento profissional do professor deve se construir fundamentalmente no curso de formação inicial, ampliando-se depois, à medida que participa de ações de formação em serviço. Mas isso não significa que apenas ao ingressar num curso pela primeira vez se inicia o aprendizado dos conteúdos relacionados ao conhecimento profissional. Bem antes de se iniciar na carreira, ao viver ao longo dos anos a condição de aluno, ao conviver diariamente com seus professores, o futuro professor aprende muito sobre sua profissão. É provável que poucas pessoas tenham a oportunidade de construir previamente uma representação tão forte de sua profissão quanto o futuro professor, pois, nesse caso, há pelo menos nove anos de convívio na condição de aluno e não se pode desconsiderar a importância formativa dessa experiência (mesmo que nem sempre seja positiva, com certeza é sempre formativa). Também o conhecimento de mundo e as formas de se relacionar com o outro – que são situações formativas, para todas as pessoas – assumem um papel importante no repertório dos professores, já que lhes cabe a tarefa de educar. Ou seja, a história de vida de cada um, inevitavelmente, se mistura muito com o exercício do magistério.


Assim, o conhecimento profissional do professor é um conjunto de saberes – teóricos e experienciais – que não pode ser confundido com uma somatória de conteúdos e técnicas; não é apenas acadêmico, racional e teórico, nem apenas prático e intuitivo. Compõe-se de saberes que permitem gerir a informação disponível e adequá-la às situações que se colocam a cada momento, sem perder de vista os objetivos do trabalho. Esse repertório de saberes se expressa, portanto, em um saber agir situacionalmente, ou seja, em conformidade com as necessidades de cada contexto. Em outras palavras, não se pode considerar como conhecimento profissional aquele que não favorece o exercício autônomo e responsável das funções profissionais que, no caso do professor, são muito marcadas pelo contexto, pelo imprevisível, pelo imponderável.



A importância e a insuficiência da formação de professores


É certo que a qualidade da formação dos educadores não garante, por si só, a qualidade da educação escolar. Mas é uma condição indispensável.As outras condições são: valorização profissional; adequadas condições de trabalho; contexto institucional favorável ao espírito de equipe, ao trabalho em colaboração, à construção coletiva e ao exercício responsável da autonomia.As transformações que a realidade hoje exige só poderão ser conquistadas com investimentos simultâneos em todos esses aspectos – já há alguns anos, a prática vem comprovando que são bem poucos os efeitos da priorização de um determinado aspecto, em detrimento dos demais.


Isso significa que as políticas públicas para a educação só terão eficácia real se tiverem como meta melhorias relacionadas ao mesmo tempo:


• ao desenvolvimento profissional e às condições institucionais necessárias para um trabalho educativo
sério – consolidação de projetos educativos nas escolas, formas ágeis e flexíveis de organização e
funcionamento da rede, quadro estável de pessoal e formação adequada dos professores e técnicos;
• à infra-estrutura material – adequação do espaço físico e das instalações, qualidade dos recursos didáticos disponíveis, existência de biblioteca e de acervo de materiais diversificados de leitura e pesquisa, tempo adequado de permanência dos alunos na escola e proporção apropriada na relação alunos-professor;
• à carreira – valorização profissional real, salário justo e tempo previsto na jornada de trabalho para o desenvolvimento profissional permanente, o planejamento, o estudo e a produção coletiva.


Sempre que se põe em foco a formação dos educadores, é fundamental contextualizá-la, considerando o conjunto de variáveis que interferem na qualidade das aprendizagens dos alunos. Do contrário, corre-se o risco de responsabilizar unicamente os educadores por resultados que apenas em parte lhes dizem respeito.


A grande pergunta a ser respondida é: por que os cursos de formação inicial não habilitam adequadamente os profissionais da educação para o exercício do magistério? É essa distorção (cursos de habilitação que, de fato, não habilitam) que provoca em nosso país uma outra distorção, com a qual temos nos debatido há vários anos: o papel compensatório da formação em serviço.


Em geral, os jovens professores – que são maioria em várias regiões do país – já foram alunos de uma escola pública que não lhes garantiu os conteúdos básicos a que todo cidadão brasileiro tem direito (conforme revelam os indicadores de desempenho escolar das últimas décadas); passaram por um curso de magistério que, além de não habilitá-los adequadamente para o exercício profissional, roubaram-lhes o direito à formação de nível médio (ao ocupar o espaço do ensino médio com as disciplinas ditas profissionalizantes); e não contam com um processo assistido de inserção na carreira, como professores iniciantes. Não é raro que essa inserção ocorra por "tratamento de choque": nas escolas mais distantes, nas classes mais difíceis, sem apoio para o trabalho pedagógico.


Nessas condições, manter-se professor é um ato de valentia. Não é justo que os sistemas de ensino e seus gestores assumam uma posição de responsabilizar pessoalmente os educadores pelo fracasso do ensino. Se a sociedade demanda profissionais bem-formados para prestar um serviço de qualidade à população, é preciso que as instituições formadoras cumpram a tarefa de habilitá-los adequadamente para o exercício da profissão.


Fonte: MEC. Ministério da Educação. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores - PROFA. Documento de apresentação. 2001. p. 7-19.