17 de agosto de 2009

Análise do trabalho de formação e do processo pessoal de aprendizagem

As situações que demandam análise do modelo e do processo de formação que ocorre no grupo, bem como do processo pessoal de aprendizagem, contribuem para que os educadores desenvolvam sua capacidade de "enxergar além" dos conteúdos observáveis, para mergulhar em outras questões que permitam aprender conteúdos que dependem de tematização para se tornar evidentes.
Entretanto, a análise de atividades, estratégias, procedimentos e atitudes que o formador utiliza para abordar o que é conteúdo explícito da formação fazem muito mais sentido no trabalho com formadores do que no trabalho com professores. Nesse caso, as estratégias que precisam ser explicitadas são aquelas que guardam similaridade com a didática de sala de aula e que,por essa razão,acabam sendo também conteúdo da formação. Em geral, com professores é suficiente escolher e utilizar boas estratégias metodológicas, não é necessário torná-las observáveis para eles.
Quando o trabalho é de formação de formadores, aí sim a explicitação e a análise de atividades, estratégias, procedimentos e atitudes do coordenador do grupo tem uma importância fundamental, pois a abordagem metodológica dos conteúdos constitui um dos conteúdos principais da formação dos que têm a tarefa de formar outros educadores: nesse caso, o "como fazer" é tema de estudo. Geralmente,os temas tratados são muito mais observáveis do que as formas de abordá-los – não basta, portanto, ao formador de formadores,escolher e utilizar boas situações de ensino e aprendizagem: ele precisa evidenciá-las. Para tanto, deve ajudar o grupo a alcançar um distanciamento da situação vivida para poder identificar as condutas,e não propriamente o que aprendeu.
Se a análise das formas de tratar os conteúdos fazem mais sentido no trabalho de formação de formadores, o mesmo não ocorre quando a questão é refletir sobre o próprio processo ou percurso de aprendizagem: isso é algo fundamental na formação dos educadores.
Entender as formas próprias de aprender e utilizar conhecimentos e a evolução da aprendizagem pessoal pressupõe uma reflexão "metacognitiva",uma reflexão que permite aprender sobre a aprendizagem.
Algumas estratégias que permitem esse tipo de reflexão: a vivência de situações que, pela análise da experiência pessoal, permite compreender alguns aspectos do processo de ensino e aprendizagem; a identificação das conseqüências, no processo pessoal de aprendizagem, das concepções de ensino dos professores de que foi aluno; a comparação dos resultados obtidos em uma reflexão inicialmente individual e posteriormente coletiva;a auto-avaliação e a identificação do percurso de aprendizagem.
As reflexões a seguir tratam de algumas dessas questões.

Explicitação das estratégias metodológicas

Sobre a natureza "metacognitiva" de certos encaminhamentos centrais, como o levantamento, a análise e a avaliação das estratégias metodológicas de formação que vão sendo adotadas ao longo do trabalho: é muito importante não se limitar a identificar ou listar as estratégias, mas sim fazer os participantes viverem a "tomada de consciência" do trabalho do formador ao escolhê-las, pô-las em prática etc. Ou seja, esse tema merece tempo na pauta de trabalho.
Artur Gomes de Moraes

Havia uma preocupação muito maior do grupo com as discussões de natureza teórico-prática sobre os conteúdos do módulo do que sobre as estratégias metodológicas de formação – parecia que isso não era nenhuma novidade.
Deixei vir à tona as dúvidas todas e propus que as anotações das estratégias metodológicas fossem feitas durante os trabalhos e não somente ao final: a cada situação, era preciso anotar num cartaz colado na parede as estratégias utilizadas para a realização das atividades. Dessa forma, ao término dos trabalhos, todas as estratégias estavam relacionadas, o que permitiu uma discussão bem interessante.
Márcia Gianvechio

No início do trabalho com os Parâmetros em Ação, eu solicitava que um ou dois participantes do grupo registrassem as estratégias metodológicas utilizadas no Encontro, e essa não era uma tarefa fácil. Primeiro, porque conseguir os voluntários para realizá-la já era complicado, e depois porque também a tarefa em si não é muito simples. Era difícil para eles entender o que estava sendo solicitado, porque geralmente o foco da atenção estava muito mais voltado para os conteúdos do que para a forma pela qual eles estavam sendo trabalhados. E, de mais a mais, freqüentemente nossas estratégias metodológicas de formação (formas escolhidas criteriosamente para tratar um determinado conteúdo, por serem consideradas mais adequadas) eram ainda confundidas com as velhas conhecidas dinâmicas de grupo. Embora eu fizesse algumas intervenções para ajudar na identificação das estratégias, o que acabava acontecendo quase sempre era um relato do trabalho.
Considerando a dificuldade inicial dos participantes dos grupos entenderem o que chamamos de estratégia metodológica, resolvi, depois de um tempo, apresentar a eles uma lista com as estratégias descritas para que coletivamente identificassem, dentre elas, quais as que estavam sendo utilizadas durante os trabalhos. Foi a forma que encontrei para ajudá-los a entender exatamente do que é que estamos falando quando falamos em estratégia metodológica". E a minha avaliação é que assim o resultado tem sido muito melhor.
Rosa Maria Antunes de Barros

Certos procedimentos e atitudes necessários a um formador precisam ser tematizados no trabalho com coordenadores de grupos de formação. Alguns deles:

• Apresentar expectativas de aprendizagem e finalidades do trabalho de formação é importante? Por quê?
• Para uma atividade de debate, de apreciação de imagem ou de discussão de um programa de vídeo, a disposição das carteiras da sala é um aspecto relevante a ser considerado? Por quê?
• O coordenador deve falar mais ou ouvir mais?
• Como valorizar o que os professores contam?
• Como favorecer a participação de todos?
• Devemos responder às perguntas feitas ou devolvê-las, problematizando-as?
Com que freqüência?
• Como encaminhar a discussão de questões sobre as quais não há consenso – por exemplo: deve-se ou não ensinar ortografia enquanto os alunos estão se alfabetizando?
• Sistematizar as discussões é importante? De que maneiras se pode fazer boas sistematizações?
A reflexão coletiva sobre questões como essas – aparentemente desnecessárias do ponto de vista de um formador experiente – é imprescindível para os educadores que estão assumindo a tarefa de coordenadores de grupo.
Eliane Mingues

Situações que permitem compreender os processos de aprendizagem

No Módulo Alfabetizar com Textos, dos Parâmetros em Ação, está proposta uma atividade muito interessante e que tenho utilizado com freqüência. A estratégia consiste em fazer o grupo vivenciar uma situação para, a partir da experiência,discutir uma determinada questão. A proposta é a seguinte:
Cada grupo recebe um pouquinho de peças de um quebra-cabeça de aproximadamente quarenta unidades (que pode ter sido improvisado pelo coordenador, com figuras recortadas) e a orientação de que deve montar o quebra-cabeça com elas. Como é impossível montar o quebra-cabeça com as poucas peças que possuem, certamente dirão que não é possível, pois faltam partes e pedirão mais. O coordenador distribui então mais um pouquinho, conforme a solicitação de cada grupo, por mais umas duas vezes, até que concluam que sem todas as peças não dá para montar nada, a não ser pedaços das figuras. Então, o coordenador entrega todas as peças, para que os professores possam montar o quebra-cabeça.
Um dos objetivos dessa atividade é favorecer a discussão sobre a relação entre o trabalho de alfabetização com silabário e o trabalho de alfabetização com textos. Para que essa discussão seja produtiva, é importante que o coordenador do grupo convide os educadores a refletir sobre a própria experiência com a montagem do quebra-cabeça: por mais que se possa ocasionalmente formar figuras com as peças, somente se consegue compor o todo dispondo do conjunto inteiro.
No encaminhamento da proposta, sempre faço algumas alterações que, na minha opinião, favorecem a conquista do objetivo da atividade – explicitar melhor as concepções que sustentam uma proposta de alfabetização com silabário e uma proposta de alfabetização com textos. Uso três quebra-cabeças diferentes, com tarefas diferentes para cada grupo, preferencialmente sem que se saiba disso: um grupo com o quebra-cabeça completo e a caixa com a figura completa de modelo, outro com o quebra cabeça incompleto e sem a caixa de modelo e outro com o quebra-cabeça incompleto, mas com a caixa de modelo. Os educadores têm avaliado que essa proposta realmente atinge o objetivo pretendido. Mas o cuidado ao encaminhá-la é fundamental, porque dependendo da forma como conduzimos a discussão acabamos, sem perceber, dando mais respostas do que deveríamos.
Rosa Maria Antunes de Barros
Nos grupos de formação de professores, estou chamando a atenção para dois pontos que considero importantes (além de escrita e leitura): a escuta ativa e a linguagem oral. Tenho começado os Encontros com uma Leitura Compartilhada a escuta de um CD de histórias e fábulas contadas, ou com poemas declamados.
No primeiro dia de um dos grupos foi uma surpresa, pois ninguém levou a sério o meu pedido de "Escutem!" Continuaram passando papel uns para os outros, anotando coisas...
No final, pedi que recontassem a fábula que tinham acabado de escutar.
Foi só reclamação... "Não deu para escutar direito"; "O som está ruim"; "Eu me lembro somente de algumas partes...". Fui articulando o pouco que lembraram e depois disse: "Como vocês fazem com as crianças, quando não escutam?" Foi muito interessante, pois a maior reclamação dos professores era que as crianças não conseguiam parar para escutar histórias, ou para reescrevê-las – precisavam de ajuda constante para lembrar o texto...
Perguntei-lhes: "Será que as crianças que ainda não estão alfabetizadas não têm capacidade de ouvir? Não sabem falar? Não podem participar de um reconto oral ou de uma escrita coletiva na qual o professor seja o escriba?".
Responderam que sim.
Discuti com eles que faz falta um trabalho voltado também para a aprendizagem da escuta atenta pelas crianças, como seria bom que as convidassem a participar dos debates, dar idéias... e por aí vai. Aquelas que ainda não se alfabetizaram só não sabem ainda ler e escrever convencionalmente, mas são capazes de ouvir com compreensão e são capazes de falar!
Percebo que essas situações em que colocamos os professores em uma situação de alguma forma similar à dos seus alunos são muito convincentes e, portanto,valiosas no trabalho de formação.
Ariana Rocha

Análise do próprio processo de aprendizagem

Memórias...

Como qualquer criança na idade pré-escolar, eu sonhava em ir para a escola, naquela época, Jardim da Infância. Não só sabia o nome de minha professora, como a conhecia, pois éramos da mesma comunidade.
Dona Mariinha era muito acolhedora, afetuosa e tranqüila. Demonstrava um carinho especial por todos os alunos.
Estava eu ansiosa por aprender. No início, ela dava muitos exercícios de coordenação motora. Depois, fiquei um bom tempo copiando o alfabeto em letra cursiva e repetindo-o em voz alta para decorá-lo, pois era assim que se concebia a aprendizagem da escrita. Em seguida, começou a ensinar as sílabas.
Percebi, então, que já sabia ler. No entanto, o conhecimento que tinha não foi valorizado pela minha professora, uma vez que o que eu já sabia não havia aprendido na escola. Tive que passar por todas as famílias silábicas para que o meu conhecimento fosse reconhecido e validado.
Já nas primeiras semanas li e reli a cartilha do começo ao fim, porém fui proibida de continuar relendo: a professora acreditava que podia controlar minha aprendizagem, e que sem ensino sistematizado e fora da escola não havia saber.
A postura de dona Mariinha era totalmente coerente com o que se acreditava, e que muitos professores ainda acreditam. No entanto, isso nunca interferiu na relação de estima e afeto que mantinha comigo e com os demais alunos.
O que me possibilitou ler antes do ensino formal?
Fui criada numa família evangélica e dominicalmente íamos à igreja. Gostava muito de cantar os hinos, acompanhando-os no hinário. Aos 6 anos, o meu repertório desse tipo de música era muito grande. Como sabia as músicas de memória, solicitava a ajuda de um adulto para encontrar o hino desejado no livro – afinal, um hinário tem cerca de quinhentos hinos… Com o tempo passei a reconhecer os números e procurar a música desejada. De repente, estava lendo.
Aprendi a ler com textos de verdade e numa situação real de leitura. As palavras não me foram fragmentadas ou simplificadas, e muito menos seus significados apresentados um a um. O processo de alfabetização aconteceu de forma natural e tranqüila, resultado de minha interação com textos de meu interesse e que faziam sentido no meu cotidiano e no grupo social em que vivia.
Embora minha professora acreditasse que podia controlar minha aprendizagem, ela percebia que eu tinha um nível de conhecimento muito superior ao que era oferecido e permitido na escola. Por isso, eu era considerada com aptidão e capacidade inatas, que determinavam a facilidade que ela supunha que eu tinha para aprender, porém, mesmo assim era preciso não ir adiante do programa e nem dos outros. O trabalho de dona Mariinha buscava homogeneizar a classe.
Ou seja, puxar para cima os que eram considerados atrasados e deter os que estavam adiantados (linguagem usada naquela época).
Lembro-me com saudades de dona Mariinha e, quando vou a Goiás, sempre a visito e é uma alegria para nós duas.
Célia Prudêncio de Oliveira

No início, os depoimentos traziam um discurso positivo, de saudade, respeito e admiração. As críticas vinham sempre amenizadas pela exaltação ao compromisso e à dedicação do primeiro professor. Apareceram expressões como medo, palmatória, punição, tomar lição, sofrimento, mas vinham acompanhadas de "exemplos dignos", "dedicação", "eficácia"... Uma participante relatou que sua professora nunca levantava da cadeira, só fazia cópia e ditado, e que suas tarefas vinham cheias de correções com caneta vermelha e ela achava aquilo lindo. Nunca foi punida, pois era boa aluna e para ela tudo era bom.
Os depoimentos não saíam disso, e eu já pensava em fazer algum comentário que pudesse mobilizar o grupo ou sugerir algo, mas contive minha ansiedade, que já era imensa, e resolvi esperar um pouco mais. Eis que surge, então, um depoimento que mexeu com o grupo. No começo parecia seguir a mesma linha dos outros, apontando posturas não mais aceitas, mas sem conseguir condená-las.
Porém, no final, trouxe uma reflexão que descortinou algo difícil de perceber, ou mesmo admitir. Dizia:

Quando fecho meus olhos eu só consigo me ver como uma criança que era extremamente submissa, passiva e assustada com tudo que pudesse fugir da rotina da sala de aula. Minha mãe sempre me dizia que obedecesse a professora e fizesse tudo certinho, pois assim eu seria considerada uma boa menina... posso ousar dizer que características acrescidas a minha personalidade foram responsáveis por uma série de comportamentos que possuo e que tenho dificuldade de superar. Hoje, a timidez, a insegurança e a falta de iniciativa são traços que muito me atrapalham. […]

Por conta desse depoimento, uma outra participante resolveu se pronunciar.
Disse que havia decidido não ler seu relato, mas mudara de idéia: queria mostrar o outro lado, o lado feio. Foi um depoimento forte que detonou uma excelente discussão em torno do que as escritas de memórias trazem: se justificam tudo o que condenam, se remetem apenas ao que foi positivo, se
as lembranças só evocam coisas boas, que significado tem isto? O que os depoimentos denunciam? Por que não lembram do que foi negativo? Será por não conseguir perceber, ou por uma resistência inconsciente? Esses questionamentos foram surgindo.
Fernanda Leturiondo Parente

No momento da leitura das memórias pessoais, em geral, peço aos participantes do grupo que analisem: De que concepção de aluno, escola, professor e alfabetização falam as memórias ouvidas? Qual a diferença entre aquela concepção e a que hoje se defende?
Vou anotando as questões colocadas pelo grupo na lousa e peço para que anotem no Caderno de Registro.
Algumas vezes, proponho algumas questões adicionais:

• Se por um lado é fácil identificar posturas pedagógicas tradicionais, o que são posturas construtivistas?
• Por que a escrita de memórias e a análise das concepções que elas revelam são conteúdos importantes na formação? No que esses conteúdos ajudam?
• O que é ser professor dentro de um marco de referências construtivista?
No último Encontro, criei uma nova variação para a proposta. O desafio consistia em pensarem como se fossem o aluno que alfabetizaram: que lembranças eles teriam de seus primeiros professores? Como contariam que foram iniciados no mundo das letras? O que se lembrariam de como foram alfabetizados?
Esse foi um excelente encaminhamento, pois obrigou-os, ao escrever essas memórias ficcionais, a pensar na própria atuação de professor...
Eliane Mingues

Fonte: MEC. Ministério da Educação. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores - PROFA. Guia de Orientações Metodológicas Gerais. 2001. p. 178 a 183